Por: Franco Biondo
O
módulo de Memórias foi ministrado em um único dia pela professora Graça, uma
das coordenadoras do curso. O encontro contou com três momentos: (1) exposição
de conteúdo, (2) reconhecimento de partes relevantes de textos apresentados e
(3) relatos de vivências marcantes dos cursistas quando alunos. Tal divisão é
aqui mencionada apenas para fins de organização, já que, ao longo de toda a
atividade, houve uma participação expressiva dos cursistas.
Durante a fala da Graça, uma das
partes que chamou minha atenção foi a constatação de que o trabalho com as memórias
de um docente, ou seja, a escritura de um texto acadêmico baseado em relatos de
vivências de professores, para muitas áreas do conhecimento (e mesmo para
muitos grupos de pesquisa da Educação), não é vista como “resultado” de pesquisa,
sendo uma luta constante dos profissionais que trabalham com este tipo de
abordagem qualitativa. Do ponto de vista da professora (de todo o ConPAS e
deste curso de extensão, inclusive), muitos saberes docentes estão ocultos nas
práticas e nas percepções do professor que atua diretamente em sala de aula, de
modo que uma das formas mais eficazes de se explorar/construir esses saberes
reside no compartilhamento dessas experiências e, consequentemente, na análise
de discurso em cima dessa interação.
Também achei muito pertinente a
ideia de que a história de vida de uma pessoa inclui tudo que ela tem dentro
dela, todos os eventos, todas as ideias, todas as percepções, todas as
felicidades, todas as tristezas, e que é inviável conceber a possibilidade de
um exercício de uma profissão (docente, por exemplo) que não seja influenciado
por esses, e muitos outros, fatores. Isto caiu, inclusive, no debate sobre o
atual Escola sem Partido, e como tal proposta é, no mínimo, irracional. Ainda,
levou à conclusão de que o entendimento da própria história de vida cria a
possibilidade de entendimento da história de vida de cada aluno, o que abre
portas para uma educação emancipatória.
A Graça, então, compartilha uma memória
alheia bastante interessante. Conta a história de uma mulher negra que, durante
sua infância, era pobre e filha de pais separados. Teve três professores que,
de diferentes formas, não estimulavam seus estudos e, na realidade, a chamavam
de burra e diziam que ela nunca conseguiria chegar longe. Após alguns anos,
além de ter se formado, a mulher também se tornou professora, mas faz questão
de, em seu memorial, dizer que, se fosse por esses três professores, isso não
teria acontecido.
Ainda,
como professora, vivenciou uma situação bastante singular, na qual um aluno
levou uma arma para a escola. Apesar de a direção ter concluído que levaria o
menino para a delegacia, a professora disse que isso não deveria ser feito,
decidindo, então, orientar o aluno todos os dias após o turno das aulas. Anos
depois, o sujeito retornou à escola e mostrou sua carteira de trabalho assinada
para a professora.
Tal
memória, da forma que eu entendi, permite identificar o quanto a nossa formação
– plural e contínua do jeito que é – define nossa prática, se considerarmos a
total discrepância entre o comportamento dos três professores e o da menina que
veio a se tornar também uma professora. Ainda, ilustra a habilidade da
professora em se importar com a história do aluno e em buscar uma alternativa
fora daquilo que é “padrão”, ou seja, procurando dar voz ao estudante e fazer
com que ele se sinta valorizado, algo que não esteve presente em sua própria
história de vida como aluna. E é aí que percebemos que, ao entendermos nossa
própria história, conseguimos conceber a ideia de que cada estudante também
possui a sua própria.
A interpretação que faço acima está
muito provavelmente embasada em tudo que tenho estudado no ConPAS ao longo do
ano, o que não significa que é a única leitura possível. Na realidade, o estudo
de narrativas pressupõe, inclusive, a ambiguidade e a pluralidade de
interpretações, o que provavelmente é um fator que alimenta a discordância por
parte daqueles que não são adeptos a essa forma de estudo.
A seguir, foram fornecidos aos
cursistas fragmentos de textos centrados na temática e eles foram divididos em
grupos para que identificassem as partes consideradas mais relevantes. Houve
dois tópicos que foram apontados por mais grupos: (1) o sujeito revelado na
história de vida e (2) a narrativa como autoformação. O primeiro diz respeito
ao reconhecimento do sujeito como tal conforme se escreve e se lê uma narrativa
sobre a história de vida, enquanto o segundo tópico identifica essa narrativa como
ferramenta de formação desse sujeito. Achei interessante que ambos os tópicos haviam
sido salientados anteriormente pela Graça em sua fala, e acredito que o maior
nível de identificação dos cursistas com tais ideias se deve a seu caráter
geral, quando comparados com conceitos mais específicos presentes nos
fragmentos.
Após a Graça ter comentado sobre os
fragmentos apontados, os cursistas relataram momentos memoráveis de suas vidas
como alunos. Houve uma mistura de relatos de experiências positivas e
negativas, a maioria das quais ocorreu em ambiente escolar e se respaldando em
um professor específico. Escolhi duas narrativas para colocar aqui, por me
permitirem fazer um contraponto com a memória apresentada pela Graça durante o
momento de exposição.
“Na quarta série, eu tinha muita
dificuldade no inglês. E eu sempre me cobrei muito, então eu estudava bastante
pra conseguir passar inclusive no inglês. Até que chegou um ponto em que eu estava
desistindo e aceitando que ia reprovar por conta do inglês. E aí minha
professora da época falou pra mim: ‘Paula,
você consegue’”.
“De bom aluno eu só tinha cara. Eu
era um péssimo aluno, em tudo. No pré-vestibular eu tive uma série de
dificuldades [...]. Eu sentava na primeira carteira e ficava desenhando enquanto
o professor de Matemática dava aula. Eu me lembro de, umas duas ou três vezes,
ele vir chamar minha atenção e dizer: ‘olha, desenha no intervalo, desenha
entre as aulas. Mas procura prestar atenção ali no quadro, isso um dia pode te
fazer falta’. Mas, o importante: ele
nunca me disse que não desenhasse”.
Se lembrarmos da memória apresentada
pela Graça, concluiremos rapidamente que a atitude dos três professores daquela
mulher negra e pobre não tem nada de semelhante com a prática dos professores
dessas últimas memórias. Se, por um lado, alguns possam afirmar que a repressão
daqueles professores acabou funcionando como estímulo para que a mulher se
tornasse uma professora diferente e totalmente capaz de reconhecer seu aluno
como sujeito, podemos dizer que, nestes últimos relatos, o estímulo positivo
desses professores foi importante o suficiente para ser relatado como memória
significativa e, dessa forma, são elementos constituidores da autoformação
destes cursistas, os quais, ao revisitarem estes momentos de suas histórias,
identificam pontos-chave de suas formações, reafirmando a pluralidade de
contribuições que possuem.
Por fim, com base no envolvimento de
todos durante as duas últimas partes da atividade, posso dizer que o encontro
se constituiu em mais uma lembrança significativa para esses cursistas. A
narrativa como autoformação me parece ser uma das mensagens mais bem exploradas
ao longo do encontro e uma que também teve profundo impacto em mim, bolsista do
projeto. Oriundo de uma formação técnica ao longo da vida, me deparei, em 2015,
com vivências, textos e formas de pensar o mundo totalmente diferentes das
quais eu estava habituado. O exercício da narrativa me permitiu compreender
minha dificuldade pessoal neste ano e me mostrou o quanto eu aprendi e mudei em
um espaço de tempo curto.
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